segunda-feira, 23 de abril de 2007

"Se minh´alma é morta, quem a ressuscitará?" - Frei Tito


Estreou na última sexta-feira o filme "Batismo de sangue". Adaptação do livro homônimo de Frei Betto. O foco é a perseguição e morte de Carlos Marighella (líder da Ação Libertadora Nacional - ALN - em oposição ao regime ditadorial instaurado no Brasil em 64). O foco é a importância de certos personagens na luta contra a repressão. O foco é um grupo dominicano que, contrariando os preceitos da Igreja Católica, se dispôs a lutar pela "Pátria Livre, ou morrer pelo Brasil". O foco é a tortura. O foco é um passado que de tão recente é esquecido, ignorado pelos jovens que se alienam "livremente" e desperdiçam todo o sangue daqueles que sonharam com um país tão distante, um "país do futuro", um país que o Brasil deveria ser.

Frei Tito de Alencar Lima fazia parte desse grupo de oposição (uma espécie de oposição bem distante da concordata que testemunhamos dia após dia). Foi preso, em 1969, e torturado. Torturado por outros homens feitos à sua imagem e semalhança, da mesma carne, da mesma vida, segundo as orações que tanto valeram por sua vida e criação. O Frei já não acreditava em nada, "nem Cristo, nem Marx, nem Freud". Palavras de uma mesma boca que fez o seguinte relato: "Eles quiseram me deixar dependurado a noite toda no pau-de-arara, mas o capitão Albernaz objetou: não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia".

Seus torturadores (e suas eternas desculpas de que apenas seguiam ordens) não o mataram. A primeira tentativa de suicídio aconteceu em 1970, na cela do DOPS. Foi posto em liberdade em janeiro de 1971, após uma reivindicação imposta por um comando da Vanguarda Popular Revolucionária (movimento guerrilheiro liderado por Carlos Lamarca) que havia sequestrado um embaixador suíço em troca de 70 presos políticos. Um deles era Frei Tito. Em seguida, exilou-se num convento na França. E se enforcou. O mês era Agosto, e o ano, 1974.

Estabeleu-se uma proximidade psicológica com seus agressores de tal maneira que, "graças ao ódio, o carrasco havia se introduzido na pessoa de sua vítima", que passara a se auto-torturar. Havia enlouquecido. Tito ou seu torturador?

No clássico sociológico de Émile Durkheim, "O Suicídio", a morte induzida conscientemente pelo próprio homem contra si mesmo é vista como uma fraqueza, quase que imunológica, perante seu meio. Estatísticas narram o século XIX. Suicídios são números. É uma doença que as próprias leis darwinistas se ocupam de aniquilar, ao destruir o fraco e perpetuar o forte. No livro ainda, o papel do Estado é visto como atenuador de inseguranças, o que fortaleceria o sentimento de unidade e ação de cada indivíduo para que este se sinta útil e amparado por um Grande Pai. O Estado é imponente. O Estado é a família, o poder, a vida. Frei Tito é a prova de que o Estado existe. E o Brasil prova que o Estado está aí, a cada veto em relação à abertura dos arquivos da ditadura, em defesa do cidadão, pobre pecador, que pode se sujar num "revanchismo" contra as forças militares, desta República feita EM nome do povo, mas nunca PELO povo. Povo este que vira estatística nos livros de sociologia.

Não tenho os números dos suicídios cometidos entre 1964 e 1985. Não tenho números dos suicídios cometidos desde então. Sexta-feira, ao voltar para casa, eu não procurava números. Mas os achei nos trilhos do metrô. Num braço de um homem branco de sangue e num tênis que um dia coube em seu pé. Um corpo esmagado por vagões numa tarde de abril. Como tantas outras (tardes). Como tantos outros (corpos). Os números param de existir quando um corpo aparece. Assim como os dados param de fazer efeito quando a sociologia atinge a sociedade, que se anula PELO Estado, EM NOME de um solitário Poder. Pequenos suicídios predizem grandes mortes sociais. Algo está errado. E suspeito de mais: algo sempre esteve errado. Por quê?
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"É melhor morrer do que perder a vida", Frei Tito, MORTO em 1974.


Vica Prestes escreveu nesta segunda-feira com frases curtas. Mas espera que seu futuro seja longo, para que este a desminta perante todas as verdades que os números tentam esconder. Uma foto preta será, para sempre, preta... por mais que nossos olhos se escondam em cores que já não se podem ver.